Binário
Esta é a história de um Binário que tinha por hábito esconder-se nos entre-folhos da Cambota, algures na fronteira entre a Biela e o Volante do Motor...
Mal amado e muitas vezes incompreendido, o Binário refugiava-se amarguradamente nos cantos mais recônditos fazendo os possíveis por passar despercebido.
Certo dia recebeu um postal da dona Potência:
"Querido Binário,
Desde que partiste o meu coração ficou vazio. Não mais preencheste com a tua virilidade e poder a minha
performance desportiva. Apesar da companhia da Biela, do Moente da Cambota, do Veio de Excêntricos à Cabeça, do Volante do Motor e do Pistão, a vida sem ti não é a mesma coisa. Sinto-me... Impotente!
Quando nos abandonaste éramos uma família perfeita. Sem o teu vigor arrastamo-nos agora por becos e vielas. Inexoravelmente, a cada dia que passa estamos mais próximos de um ferro velho qualquer.
Não pudemos mais viver sem ti.
Volta Binário que estás perdoado.
Com muito óleo semi-sintético API SJ,
Desta tua Pitonisa,
Potência"
Ao ler estas linhas as lágrimas lubrificantes SAE 5W40 escorreram-lhe pela testa acima. O texto havia-o tocado profundamente e começava agora a sentir um novo vigor vectorial. Tinha de regressar rapidamente. Mas havia um
problema. Quando o Binário se foi nunca pensou em voltar. Como certamente entendem, perder o Binário é simples, mas recuperá-lo pode ser dramático.
Nada de pânico, pensou ele. Resolveu tentar entrar pelo Sistema de Escape mas logo reconsiderou ao imaginar a traição que iria fazer à Potência ao penetrar a senhora Panela de Escape.
Outra hipótese válida era cruzar o Filtro de Ar, prosseguindo pelo colector de admissão... Havia passado algum tempo e com a evolução técnica, podiam os Carburadores, seus velhos amigos, ter sido substituídos por Injectores... Era arriscado. Nunca se pode confiar em Injectores. Quando menos se espera, não obedecem ao dono, ou pior... Quem não levou já uma injecção para saber o que custa?
Outra hipótese era liquefazer-se, misturar-se com um líquido aromático de 98 Octanas e entrar através do Depósito. O Tampão até dava um jeitinho... Mas mais uma vez esmoreceu... Não era uma caminho muito
diferente. No percurso podia encontrar na mesma os Injectores e voltava a ter problemas.
Restava uma última solução... Era algo arriscada, mas o prémio final valia o esforço. Se tudo corresse bem, no final do dia estaria ao lado da sua amada, dona Potência.
O plano era imperfeito mas à falta de melhor não restava outra alternativa. Mascarou-se de SLICK50 e imiscuiu-se num bidão que continha Óleo de Motor API SJ - 10W40. Aquele líquido viscoso dourado fazia-o sorrir. Impulsionado pela Bomba de Óleo do Motor, imaginava-se já a percorrer as entranhas da Cambota, a desvairar a Biela, a besuntar o Pistão, escorrendo pelos Segmentos de Lubrificação e regressando aquecido, com a ajuda dos Segmentos Raspadores, ao Carter onde estaria novamente chapinhando junto da sua "Potência". Que visão maravilhosa!
Só havia um pequeno problema. Primeiro tinha de ir ao Bujão... Ir era uma força de expressão. Tratava-se de convencer o Bujão a deixar verter o Óleo Queimado que havia perdido toda a sua vaidade e apresentava-se agora
sem ânimo para cumprir a missão. Além do Bujão tinha de convencer também o Carter. Nenhum Carter que
se preze aceitaria de boa vontade que lhe "fossem" ao Bujão! Afinal não foi assim tão difícil pois até o Carter já ansiava por uma revisão periódica.
Mudado o Filtro de Óleo, retirado o Tampão enroscado na Tampa das Válvulas, o Binário escorregou por entre as Molas, saudando o Veio de Excêntricos, que com a idade estava cada vez menos excêntrico, descendo pelas condutas do Bloco até ao Carter que por esta altura já tinha o Bujão enroscado, hermeticamente fechado por uma Anilha de cobre! A gravidade havia cumprido a sua missão e estava agora muito perto da sua amada Potência.
O motard aproximou-se da sua montada, colocando a Chave no Canhão e premindo o Botão da Ignição. O Binário sentiu um suave murmurar acompanhado de um leve estremecer da Cambota, impelida pelo Volante do Motor que roçava sofregamente no Bendix do Motor de Arranque.
A rotação aumentou... O Binário sentiu-se puxado. O som era agora inebriante. Pleno de Binário o motociclo arrancou em 3ª por inexperiência do seu condutor. Mas não lhe faltava Binário. Nem isso foi suficiente para o
Motor ir abaixo. 4ª, 5ª, 6ª... Sentia-se agora a Potência a vibrar... Havia finalmente reencontrado o seu Binário e respiravam agora os dois ofegantes num êxtase contínuo.
A Embraiagem deslizava, os Carretos da Caixa rodavam desvairadamente, o Pinhão de Ataque provocava intencionalmente a Cremalheira roçando-se avidamente na Corrente. A Cremalheira refugiava-se na Jante
traseira que por sua vez se libertava daquele excesso de energia através do Pneu de Borracha e Sílica Gel! 100, 200, 300 km/h... Loucura!
Tudo correu bem até um dia...
Batiam, leve, levemente, como quem chama por mim...
Não, não era a Brigada de Trânsito a mandar parar...
Era o Humberto, o Mig e o Pimentel às turras com os Travões... Para
testar as suas teorias perderam inevitavelmente o Binário... E a Potência!!!
Fiquem na paz do senhor,
Boas curvas sempre com precaução,
Ricardo Germano
(motociclista, formador)
http://www.ricardogermano.0catch.com/
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